This research aims to understand the process that led to the consecration of the butt as a cultural product at a time when the mass culture in Brazil was expanding and the military-corporate dictatorship consolidated the political regime of heterosexuality. The transformations in the visibility status of the city of Rio de Janeiro, which followed the strengthening of mass tourism, allowed that the female body incarnated in a carioca incorporated new models of Brazilianness. In this context, the butt emerged as a possible sign as well as an agent of history, since it mediated an economy of gender, race, class, and sexuality that circulated through consumption. This visual economy favored new biopolitical models that negotiated the evolution of national “nature” through the perfect body. In this sense, this article seeks to map out regulatory models and to expose the structures of power and knowledge that sought to produce regimes of truth about the national body. Supported by elements of mass culture (goods, images, services, etc.) this work investigates the ways through which the butt was co-opted by power as a part of Brazilian visual culture, supporting the global commercialization of Brazilian bioesthetics.

Esta investigación tiene como objetivo comprender el proceso que llevó a la consagración del trasero como producto cultural en un momento en que la cultura de masas se expandía y la dictadura militar-empresarial consolidó el régimen político de la heterosexualidad. Las transformaciones en el régimen de visibilidad en Río de Janeiro que vinieron con el fortalecimiento del turismo de masas permitieron que el cuerpo femenino encarnado en la mujer carioca incorporara nuevos modelos de brasilidad. En este contexto, el trasero surgió como un posible signo y también un agente de la historia, ya que supo mediar una economía de género, raza, clase y sexualidad que circulaba por el consumo. Esta economía visual favoreció nuevos modelos biopolíticos que negociaron la evolución de la “naturaleza” nacional a través del cuerpo perfecto. En este sentido, este artículo busca mapear algunos modelos regulatorios y dar a conocer las estructuras de poder y saber que buscaban producir regímenes de verdad sobre el organismo nacional. Apoyado en elementos de la cultura de masas (bienes, imágenes, servicios, etc.), este trabajo investiga las formas en que el trasero fue cooptado por el poder para ser parte de la cultura visual brasileña, ayudando al país en la comercialización global de la bioestética nacional.

Essa pesquisa visa entender o processo que levou à consagração da bunda como um produto cultural num momento em que a cultura de massa se expandia e a ditadura militar-empresarial consolidava o regime político da heterossexualidade. As transformações no regime de visibilidade do Rio de Janeiro, que vieram com o fortalecimento do turismo de massa, permitiram que o corpo feminino encarnado na carioca incorporasse novos modelos de brasilidade. Nesse contexto, a bunda emergia como um signo possível assim como um agente da História, uma vez que mediava uma economia de gênero, raça, classe e sexualidade que circulavam através do consumo. Essa economia visual privilegiava novos modelos biopolíticos que negociavam a evolução da “natureza” nacional através do corpo perfeito. Nesse sentido, esse artigo procura cartografar modelos reguladores e desnudar as estruturas de poder e saber que buscavam produzir regimes de verdade sobre o corpo nacional. Amparado em elementos da cultura massa (mercadorias, imagens, serviços, etc.) esse trabalho investiga os modos pelos quais a bunda foi cooptada pelo poder para fazer parte da cultura visual brasileira, auxiliando o Brasil na comercialização global da bioestética nacional.

Nos anos 70 e 80, enquanto o Brasil vivia o obscurantismo da ditadura militar acontecia simultaneamente a reestruturação do campo da cultura. Isso permitiu a operacionalização de amplo e complexo sistema de representação midiático que produzia novos signos para o consumo visual. Se durante os anos cinquenta se instaurou a segunda revolução industrial no Brasil,1 isso aconteceu sobretudo porque o capitalismo atingiu formas mais sofisticadas de produção. Por outro lado, a ditadura militar facilitou a reorganização da economia brasileira. O que marcou esse período foi a internacionalização do capital a partir da expansão do parque industrial brasileiro.

Essa política do Estado ditatorial brasileiro adquiriu uma nova forma de agir que a tornou única em relação a outras políticas adotadas desde o início do século.2 Após o golpe empresarial militar3 o sistema capitalista passou por importantes transformações em seus modelos de acumulação. Esses padrões do capital e dominação passaram a ser administrados junto a uma mudança na estrutura produtiva e ideológica simultaneamente.

Um dos aspectos centrais para dar efetividade e potencialidade à expansão da indústria cultural no país foi a constituição de uma rede nacional de telecomunicações a partir dos anos 60.4 Principalmente capitaneado pela televisão, esse sistema foi suporte tecnológico imprescindível para que a comunicação pudesse integrar o país, ou ao menos suas regiões com maior desenvolvimento industrial, por meio da produção de bens simbólicos orientada pela lógica mercantil da indústria cultural. Aliado a isso, havia também componentes mercadológicos que inseriam o Brasil em um modelo de desenvolvimento voltado para o capital internacional. Entre os elementos mais centrais desse processo encontramos o “advento do neoliberalismo com a privatização do Estado, a desregulamentação dos direitos do trabalho e a desmontagem do sistema produtivo estatal, cuja Era Thatcher-Reagan foi a maior expressão”.5

O processo de reestruturação da produção e do trabalho foi acompanhado pelo aprofundamento da transnacionalização do capital e consolidação da cinematização6 que vinha desde meados do século sendo progressivamente operacionalizada.7 Por isso, o capitalismo passou por uma reestruturação buscando dar novos sentidos a seu projeto de dominação onde a cultura se tornava a força de produção da economia. O capitalismo, a partir da cultura, instrumentalizou aspectos práticos e pragmáticos próprios à sua reprodução. No período, esses elementos foram efetivados através da arte e da produção de elementos simbólicos que inseriram, a partir da cultura, o ethos capitalista como projeto neoliberal.

Nesse cenário, o que mudou foi a relação entre Estado e cultura, uma vez que nesse período se desenvolveu um mercado de bens materiais onde paralelamente se manifestou um mercado de bens simbólicos. Se nos anos 30, os produtos culturais atingiam um pequeno número de pessoas, na década pós-64, elas atingiram um público consumidor enorme porque tinham uma dimensão que não possuíam anteriormente.8

Num país tão grande em extensão como o Brasil, a integração das diferenças regionais foi central para a política do Estado como forma de articular esse público consumidor crescente. Desse modo, o Estado passou a estimular a cultura como forma de integração, mas sob seu próprio controle: o poder nacional. Daí a necessidade de efetivar um Sistema Nacional de Cultura, embora isso não tenha sido viabilizado9 – o que de fato propiciou a integração da cultura nacional foi o Sistema Nacional de Turismo junto ao Sistema Nacional de Telecomunicações.

Uma das ferramentas mais centrais entre as políticas no setor do turismo foi a Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR),10 que foi implementada a partir de meados dos anos 60. EMBRATUR é o nome de uma autarquia especial do Ministério do Turismo do Brasil. Sua função é executar a Política Nacional de Turismo do governo brasileiro no que diz respeito à promoção, marketing e apoio à comercialização dos destinos, serviços e produtos turísticos brasileiros no mercado nacional e internacional.

Como a cultura se tornou um bem de consumo (assim como o turismo) se expandiram produtos, serviços e marcas alinhados aos novos desejos de consumo mediados pela grande mídia. Uma vez que a cultura havia se tornado fundamental para o controle simbólico, o Estado autoritário via nela uma oportunidade de monopólio na interpretação do país:

“(…) O Estado detém o monopólio da única interpretação que ele próprio considera válida para o conjunto da sociedade. (…) O que não se situa no âmbito da doutrina de ‘segurança e desenvolvimento’ pode ser intolerável ou reprimido. (…) mesmo porque esse Estado precisa alimentar-se da falsa ideia de estabilidade social e política, da perenidade do presente”.11

Por esse motivo, o Estado não podia atuar apenas na repressão à cultura. O interesse maior era o de colocá-la sob sua orientação, especialmente por entender a potência política da sua dimensão simbólica. Nessa experiência peculiar do Brasil junto à indústria de produção e circulação da cultura, empresas (multinacionais e brasileiras) consolidaram um sistema de representação, um universo de visualidades, de mercadorias e de signos atravessados pela ideologia nacional-popular do Estado. O fortalecimento e a expansão da indústria cultural eram fundamentais para a progressiva implantação das políticas neoliberais. E para que fossem incorporadas era preciso uma tecnologia de poder que reformulasse seu sistema de representação junto a um regime de recriação de símbolos nacionais. A consequência disso, foi que o consumo passou a pautar narrativas sobre a “brasilidade”.

O Chile foi um “laboratório experimental”12 do neoliberalismo nos anos 70, o que provocou uma série de transformações: a mudança no regime da previdência para o regime de capitalização, a privatização do ensino público, etc. Igualmente o Brasil, serviu de palco para a experimentação do neoliberalismo. Diversas pesquisas13 conferem uma profunda relação entre os empresários e a política na ditadura que garantiu o processo de neoliberalização no país durante um longo período. São exemplos, os casos da indústria de base, dos bancos e do setor automotivo que operacionalizam inúmeros episódios acerca da relação entre essas frações de classe, as finanças e os preceitos de livre mercado.

Diferentemente do que se imagina, o neoliberalismo não é somente uma expressão do mercado auto-regulável como, sobretudo, depende de governos profundamente conservadores e autoritários para ser implementado.14 Neoliberalismo nas suas diferentes formas pode ser definido15 através da financeirização da produção, da ideologia e do Estado, e a procura pela integração internacional da produção (“globalização”).

Nesse modelo de poder há um papel proeminente do capital externo na integração global da produção e na estabilização do balanço de pagamentos; uma combinação de políticas macroeconômicas baseada em políticas fiscais e monetárias contracionistas e em metas de inflação nas quais a manipulação das taxas de juros se torna uma ferramenta central de política econômica. O Brasil, representou nessa época uma forma de “paraíso” para as empresas transnacionais que usavam o país como plataforma de exportação de seus produtos à medida que recebiam inúmeras facilidades por meio de políticas públicas.

Contudo, diferentemente do Chile ou de outras experiências, a dimensão que o empresariado operou no Brasil, durante a ditadura, voltou-se para a financeirização da cultura e da ideologia nacional fortemente amparada em questões de raça e gênero. Isso aconteceu especialmente a partir da relação entre as empresas e o Estado onde ambos lideraram um projeto de capitalização do corpo nacional e seus marcadores sociais. Ou seja, o Brasil serviu como um laboratório sexo-racial do neoliberalismo. Essa dinâmica do poder procurava casar neoliberalismo e autoritarismo e esse conflito tinha como objeto de mediação o corpo nacional, que buscava alinhar uma série de valores conservadores sobre identidades sexuais, brasilidade e raça e ao mesmo tempo procurava agregar linguagens, mercados em ascensão como a pornografia e a reconstrução corporal. Nacionalizar “o corpo” brasileiro através princípios normativos para comercializá-lo significou uma forma desterritorializada para capitanear a brasilidade em mercados globais, criando novas mercadorias, signos, serviços e artefatos correlacionados.

O corpo foi simultaneamente territorializado para redefinir modelos regulatórios “nacionalizados” sobre raça, sexo e beleza e desterritorializado para que fosse reincorporado em outros espaços transnacionais. Para territorializar esse corpo como “nacional”, foi preciso regionalizá-lo. A região se tornou produto de uma homogeneização, de uma sucessão de imagens e representações que buscavam transformar o caráter local da cidade do Rio de Janeiro em um signo do Brasil. O Rio de Janeiro passou a ser homogeneizado em diferentes enunciados e práticas para produzir efeitos de dominação. Por ser um espaço aberto, fluído e atravessado por diferentes forças de poder e saber, ele foi discursivamente manipulado para visibilizar um novo Brasil aberto, democrático,16 pornográfico, consumidor e culturalmente civilizado.

Como vemos nas imagens abaixo (fig. 1), empresas como a Mesbla-Philco, a Kodak, a Flexa, os Hotéis Othon, a Philips e a Avianca estavam diretamente engajadas em territorializar expressões da nacionalidade através de uma economia de gênero que se materializava através de promoção de produtos e serviços associados à mulher brasileira e sua sexualidade. A economia se fortaleceu junto à ascensão da indústria do entretenimento que passou a traduzir modos de organização social e do prazer sexual que os subjetivava por meio da mediação da imagem. O fortalecimento e expansão da produção cultural resultou na integração da “sociedade do espetáculo”.17

Figura 1.

A, Propaganda Avianca, Travel Leisure, nov. 1974. B, Propaganda Othon Hotel, Hotel News, ano XIV, dez. n.º 74, 1975. C, Propaganda Philips, Manchete n.º 1288, 1976. D, Propaganda Flexa, Manchete, ed. 0941, 1970. E, Propaganda Kodak. F, Propaganda Mesbla-Philco, Rio Samba e Carnaval, n.º 11, 1982

Figura 1.

A, Propaganda Avianca, Travel Leisure, nov. 1974. B, Propaganda Othon Hotel, Hotel News, ano XIV, dez. n.º 74, 1975. C, Propaganda Philips, Manchete n.º 1288, 1976. D, Propaganda Flexa, Manchete, ed. 0941, 1970. E, Propaganda Kodak. F, Propaganda Mesbla-Philco, Rio Samba e Carnaval, n.º 11, 1982

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Nas imagens, quem estava capitalizando e reterritorializando ideias sobre o Brasil eram as empresas, a partir do consumo de mercadorias atravessadas por significados compartilhados sobre o Brasil. Essas ideias circularam desde objetos plásticos até televisores, dentre os quais inúmeros outros exemplos poderiam ser dados. Essas empresas buscavam produzir memória sobre o Brasil através de um elemento em especial: a mulher brasileira. Ela foi o elemento em comum em todas as imagens (mesmo não estando presente na imagem A no qual os conteúdos discursivos supõem uma relação traduzível entre sexo e espaço.

Outro elemento importante é a tecnologia. Signos do desenvolvimento foram incorporados para significar a ideia de que o Brasil não era meramente um exportador de matérias primas. Mas não somente isso, a tecnologia estava associada também ao corpo. Na imagem A, por exemplo, o texto diz: “Observe, e você verá o que nós queremos dizer, o balanço dos quadris (…) os meninos que tocam samba na praia de Ipanema, onde são vistos os corpos mais bem desenvolvidos do mundo…”. Corpo, nacionalidade e desenvolvimento eram componentes que conferiam sentido à ideia de “mulheres”. Os signos do progresso (a tecnologia midiática, a arquitetura e a aviação) fundiam-se à tradicional ideia de “natureza”, que era colocada como contraponto nas imagens para significar a “brasileira” como “o corpo mais desenvolvido do mundo”.

O caráter espetacular do Rio de Janeiro encontrava no corpo o que procurava reconfigurar na fusão entre imagem e realidade: a ideia de desenvolvimento tecnológico, consumo e a manutenção das fantasias coloniais ressignificadas. A recorrência na relação entre corpo e signos tecnológicos como televisores no caso da Philco e da Phillips, e a moderna arquitetura dos edifícios da cidade, como no exemplo do Hotel Othon, mostram a necessidade de contrapor dois sistemas simbólicos complementares: um masculino, que é associado ao desenvolvimento tecnológico, e o feminino, que está relacionado ao corpo da mulher (figurado nos biquínis, fantasias de Carnaval ou na praia).

O esforço em colocar o corpo feminino junto a natureza é também um esforço em situar categorias como “carioca” ou “brasileira” como parte de uma “natureza” biologicamente fundada. A imagem D, por exemplo, da empresa Flexa que comercializa produtos e embalagens plásticas, recobre o corpo seminu da mulher o relacionando à imensidão de conteúdos plásticos. O texto sugere que falta à empresa fabricar “a Teresa”18 (ou seja, a natureza, transformada em corpo de mulher).

Uma leitura possível dessa relação entre natureza e tecnologia é a de também elaborar significados para o corpo “mais desenvolvido do mundo”, ou seja, colocá-lo ao lado de outros elementos tecnológicos que contribuíam para o desenvolvimento do Brasil. Dessa forma, o corpo poderia ser significado como signo do avanço civilizacional. Ou seja, traduzir sentido elaborando ideias sobre a natureza nacional que havia evoluído. Se de um lado, a natureza supõe estar biologicamente no corpo em uma oposição dicotômica, por outro, a interpretação da imagem pode conduzir também a uma leitura no qual o corpo “nacional” (natureza) também estava sendo produzido pelas tecnologias.

O “processo de nacionalização da natureza”19 narrava como diferentes países latino-americanos buscavam transformar o status de commodities em “ícones nacionais”. São exemplos, a Argentina com a carne e o Brasil com o café. Nesse processo a representação nacional e local latino-americana se associava a elementos da natureza que se convertiam em mercadorias. Em resumo, eram matérias-primas colocadas para circulação pela América Latina no mercado internacional, que se tornaram também signos dessas nações latino-americanas. Essa captura simbólica da natureza pelos Estados-Nacionais seria uma característica comum aos países latino-americanos uma vez que as imagens apresentam a natureza associada ao solo fértil, às frutas exóticas, ao monocultivo,20 etc.

Mas o capitalismo cognitivo que se consolida a partir dos anos 70 não nacionalizava apenas seus commodities, produzia um complexo e tentacular sistema de imagens e mercadorias que negociava o que entendia como natureza (mulher, nacionalidade, raça e sexualidade) a partir de diferentes sistemas simbólicos (como no caso das imagens acima). De maneira geral, esses sistemas de signos foram nacionalizados a partir da relação espaço-corpo, como veremos a seguir.

Se a ciência (ou outros regimes de saber) produz estruturas de dominação através da delimitação dos campos de estudos e da definição dos métodos e abordagens atravessados por noções de sexo e de raça, as cidades da mesma forma produzem estatutos de visibilidade atrelados às práticas sexuais. O espaço da cidade foi biopoliticamente gestado para demarcar fronteiras que poderiam ser cartografadas a partir de imagens que visibilizaram o corpo sadio, belo e consumível eroticamente, a fim de apagar os corpos abjetos e implementar marcos de visibilidade sobre quais corpos deveriam transitar, com qual finalidade e aonde.

As cidades são fabricadas através de zonas morais21 que podem ser organizadas de acordo com a classificação social do espaço em que o erótico pode ser um critério de separação e hierarquização entre territórios da cidade. Nesse sentido, existe uma cartografia e uma geografia sexual que se inscreve entre os bairros da cidade e que ganha maior visibilidade na zona sul da cidade22 que se manifesta por meio do cosmopolitismo associado ao turismo. Nessa cartografia de desejos há espaços de sociabilidade nos quais a interação busca na sedução a finalidade da troca sexual.

As reformas urbanas que provocaram o deslocamento da região central do Rio de Janeiro para a zona sul – que foram implementadas desde o século XIX – se intensificaram no século XX e ocorreram pela interação de alguns fatores, resultados de mudanças no comportamento cultural da população:

“(…) a valorização da praia, a política higienista da república, implementada pela reforma de Pereira Passos e a melhoria de acesso à região tanto pela abertura de caminhos e túneis quanto pela oferta de transporte coletivo que, em termos de zona sul, se refere às linhas de bonde”.23

As transformações na cidade que impuseram marcos de visibilidade e circulação a alguns corpos e regulavam o acesso e a representação para outros, mostravam a passagem de um regime dominado pelas técnicas biopolíticas de governo em torno da regulação da população, e consequentemente, em torno do nascimento da economia política.24

O Rio de Janeiro passava a ser considerado um espaço de circulação que precisava de ordenamento, eliminando os corpos que eram considerados perigosos, separando a “boa” circulação da “má”, maximizando a “boa” circulação e minimizando a “má”. Frente a essas mudanças, ruas foram alargadas, cortiços foram destruídos e a população pobre foi removida de suas antigas moradias.25

No final da década de 60 e durante a década de 70, foi criada a Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio, onde em documentos oficiais, a favela era descrita como “espaço urbano deformado”.26 A continuidade da política higienista se fazia fortemente presente. Os projetos remocionistas foram estruturados com Carlos Lacerda (1960–1965), e em função do golpe militar-empresarial, em 1964, tornaram-se uma política federalizada, ou seja, um projeto nacional. Entre 1962–1973 a política de remoção das favelas transformou a organização espacial do Rio de Janeiro através do deslocamento compulsório de, no mínimo, 140 mil pessoas de 80 favelas.27

A cidade se transformava em uma vitrine que atraía o turismo de massa. Para isso, as políticas tornavam possível a remoção das favelas a fim de atenderem as demandas do empresariado da cidade. Mas, assim como havia uma preocupação com a visilibidade do corpo favelado, havia também a preocupação com o aumento da migração e a circulação do corpo migrante. A migração era oriunda especialmente do êxodo rural. Dados mostram que desde 1970, a população rural brasileira reduzia em termos absolutos. Esta redução da população rural – primeiramente em termos relativos, depois em termos absolutos, ocorreu, num primeiro momento, como consequência dos movimentos migratórios e, posteriormente, à queda de fecundidade rural.

A migração interna em direção aos polos industriais do Rio de Janeiro e São Paulo se potencializou ainda nos anos 50. Nos anos 70 por volta de 40% da população que vivia nas áreas rurais no começo da década deixou o campo até o seu fim. O Sudeste aparecia também com números bastante relevantes: quase 4 milhões de habitantes deixaram o campo, o que corresponde a 30,9% da população rural do início da década, expandindo as áreas metropolitanas da própria região, então em franco crescimento.28

Ou seja, as transformações sociais oriundas das desigualdades brasileiras, transformavam as grandes cidades, enquanto o poder político pensava em estratégias de proteger os bairros de elite da circulação de corpos “não adequados”, afastando a pobreza e negritude dos espaços mais visíveis turisticamente. Ao mesmo tempo em que a continuidade das políticas higienistas regulava a circulação e estabelecimento da população negra, migrante e pobre das favelas e espaços da cidade, nos anos 60 e 70 os territórios das praias da Zona Sul caracterizavam e visibilizavam a ascensão econômica das elites urbanas, que poderiam experimentar o privilégio do lazer e da vida social à beira-mar.

As classes médias da zona sul foram integradas ao espaço urbano e consequentemente às suas cartografias do desejo, que atendiam os interesses do turismo de massa. Alguns de seus bairros como Leblon, Ipanema e Copacabana eram metáforas de um Brasil feminino onde o Rio de Janeiro mercadológico-turístico forjava os seus territórios de visibilidade e seus regimes de verdade sobre o Brasil.

As disputas em torno da ideia de identidade nacional podem ser chamadas de dispositivos de nacionalidades.29 Elas se referem à história de práticas e enunciados que atribuíram homogeneidade em relação àquilo que se define como nacional, oferecendo a essas ideias um regime de visibilidade e linguagem. As identidades nacionais são construções mentais, onde se cria a realidade. Esses sistemas de representação institucionalizam o que é “nacional” através de regimes de produção de verdade. Por conseguinte, se formularam uma série de discursos atravessados por “verdades” que conduzem a interpretação de comportamentos e atitudes em relação ao Brasil.

Contudo, apesar do prazer sexual estar sendo territorializado, havia também uma preocupação evidente com a projeção da sexualidade. O amplo espectro da sexualidade, poderia abrir margem para a associação as expressões dissidentes e os agentes da ditadura se preocupavam com a publicidade dos “desvios sexuais” e de gênero. Segundo os militares, o local mais favorável para o aumento de relações homossexuais depois dos Estados Unidos, era o Brasil: “há um grande aumento no fluxo turístico gay rumo aos insuspeitos prazeres tropicais”.30 A preocupação com o turismo gay e a ansiedade em relação à invasão da homossexualidade no Brasil, permitiu a territorialização da heteronormatividade através da difusão da iconografia da praia carioca da Zona Sul, em geral a partir de Ipanema.

Esse paraíso neo-pornográfico publicizava o desnudamento público como parte de uma economia normativa. Contudo, para o regime militar-empresarial a publicização da homossexualidade deveria ser controlada, já que ela estava associada à delinquência e isso era um problema de segurança nacional, uma vez que “atentava contra a brasilidade e os bons costumes”.31 Documentos da Polícia Federal indicavam detalhadamente as investigações que eram realizadas com o fim de perseguir homossexuais, executando vários tipos de sanções a figuras públicas, como artistas e diplomatas, especialmente aqueles que eram mais afeminados. Para eles, a homossexualidade era uma conspiração planetária e comunista que atacaria diretamente a juventude.

Nesse sentido, as praias da Zona Sul do Rio de Janeiro do início dos anos 70 foram o epicentro de uma disputa em relação à territorialização das identidades heteronormativas enquanto se produziam resistências, modos de ação, performances queer e terrorismo anal no mesmo espaço. A cultura desbunde, surgia no Píer de Ipanema como um movimento de contracultura e experimentação física, onde procurava se viver a sexualidade mais abertamente. A nova revolução dos costumes que governava a classe média impactava num afrouxamento de costumes conservadores, a ponto de produzirem mulheres mais conscientes em relação à sexualidade e homens que desobedeciam os modelos de virilidade hegemônicos (cabelos longos, roupas estilo “unissex”, falas delicadas e atos gentis). Para eles, havia um elogio relacionado à valorização de um “lado feminino”, que eram características comuns a um novo modelo e masculinidade que surgia.32

Apesar da contracultura produzir rachaduras nos modelos normativos de identidades sexuais, o poder renegociava a imagem nacional junto aos canais de divulgação. Neles, sugeria-se a beleza da bunda feminina e do progresso industrial através da comercialização de subprodutos associados ao Rio de Janeiro. Embora, nesse regime político, a bunda feminina estivesse majoritariamente à mostra a fim de sugerir uma relação direta com o fácil acesso ao sexo, por outro lado, a bunda masculina deveria desaparecer das imagens porque o ânus masculino deveria ser “castrado”.33 A ideia era sugerir o sexo anal como uma eventual aventura com mulheres e igualmente rejeitar as práticas anais daqueles corpos que eram entendidos como masculinos. Os regimes políticos deram um gênero à bunda, junto a ela, uma indicação a exclusividade do ato sexual.

A castração do ânus masculino e a performatividade de gênero (feminino) associada à bunda caracterizou parte da economia visual brasileira da década de 70. A materialização dessa relação (omitida) entre ânus castrado (masculino e invisível) versus bunda (feminina e exposta) se manifestou em mercadorias operadoras do nacionalismo cultural que foram transversais a uma economia de gênero muito potente. De modo que o consumo visual e seus indicadores de desempenho vitoriosos poderiam projetar, promover e internacionalizar a bunda como uma expressão mediadora do corpo nacional e seus marcadores.

Frente às estratégias biopolíticas que regulavam as condutas sexuais e inventavam a patologia e a normalidade, o desbunde cultural agenciou reações através de uma “política do ânus”34 nas quais as mulheres, as bichas, as travestis, as lésbicas e as masculinidades horizontais entravam em colisão com o movimento viril das esquerdas heroicas e as direitas histéricas.

A cultura desbunde era mal vista pelos guerrilheiros da esquerda que se referiam às pessoas que haviam deixado a luta armada como “desbundados”.35 Um companheiro desbundado era considerado um traidor da causa revolucionária se tornando um possível “alienado”. Se por um lado, as direitas associaram as homossexualidades a um projeto global de devassidão moral e avanço comunista, por outro, as esquerdas brasileiras eram demasiado bélicas e viris para levarem a sério outras pautas fora a transformação social através da luta armada. A linguagem dos movimentos estudantis e de luta armada era bastante homofóbica e buscava na masculinidade vertical e heroica sua força de ação contra o Estado, excluindo os homossexuais que eram vistos como muito frágeis para o confronto armado.36

O desbunde cultural carioca, negociava novos códigos de masculinidade, feminilidade e sexualidade e projetavam uma Ipanema que o Estado não gostaria que fosse vista. Ipanema era a vitrine de um Brasil democrático, branco, desenvolvido e utópico que, sobretudo, deveria ser heterossexual. Um exemplo disso aconteceu em 1975, quando Said Farhat então presidente da EMBRATUR discursou na ocasião de uma conferência em que falava sobre as potencialidades turísticas do país:

“(…) Sabemos que o futuro do Brasil está em nossas mãos. Que o melhor que temos que fazer agora é mostrar-lhes o país. Chamar sua atenção para as nossas belezas, como a Bahia, Brasília e o Pão de Açúcar, ou as andantes, como as da Praia de Ipanema.”37

Portanto, as políticas visuais e representações hegemônicas sobre o Brasil, produzidas pelos dispositivos de poder, estipularam uma cultura visual heteronormativa como profilaxia social. A heteronormatividade era canalizada pela cultura de massa que comercializava modelos regulatórios de gênero e raça. Um exemplo disso, foi que o Estado ditatorial brasileiro havia “oficializado” a pornografia no Brasil,38 permitindo a comercialização de inúmeras revistas “adultas” e a distribuição e criação filmes pornográficos nacionais39 que até então eram proibidas.

Um desses produtos eram as “pornochanchadas”40 brasileiras que de modo geral tratavam de estórias reforçavam papéis de gênero tradicionais e tabus socialmente regulados. Por isso, as pornochanchadas tiveram um jeito “nacional” de contar histórias que remetiam o ambiente sociocultural e a temáticas comuns no repertório de crônicas da vida brasileira. Nos mais diferentes enredos e roteiros, as narrativas eram atravessadas por uma constante ideia de brasilidade, onde se reforçava a “virilidade do homem” e se elogiava e a “beleza e gostosura da mulher brasileira”.41

Muito mais do que somente um gênero fílmico, a pornografia foi uma importante ferramenta reguladora da sexualidade na cultura de massa. E foi igualmente manipulada pelos dispositivos de poder, mesmo em um regime conservador. O mesmo Estado que verticalizava o combate moral, a defesa da família e a censura, estruturalmente manipulava o espaço semiótico “nacional” (através do turismo, por exemplo) negociando a heteronormatividade, tentando banir as sexualidades dissidentes e as expressões queer, a fim de regular o que eram as condutas adequadas e visíveis no imaginário nacional e global. O soft porn, se instaurava como linguagem preferencial da mídia e a EMBRATUR (um braço do Estado) acentuava esse caráter regulador essa economia visual que recriava o Rio de Janeiro, investindo na semi nudez feminina a fim naturalizar papeis de gênero e normalizar o corpo “straight42 perfeito, sedutor e consumível. Essa brasilidade pornográfica que teve como efeito normatizar as identidades sexuais nacionais, pode ser chamada de “pornonacionalismo”.43

Todas as imagens acima foram retiradas do material de divulgação da EMBRATUR as primeiras (A e B) das revistas Rio, Samba e Carnaval e as últimas (C e D) de outros materiais promocionais da mesma instituição. Dentre as muitas possibilidades de análise das imagens, uma das relações que pode ser observada é que a bunda e o corpo feminino têm efeito de signos de nacionalidade, assim como sua associação ao Rio de Janeiro. As narrativas circundam o caráter lúbrico da cidade que é flagrada mulher, tornando-se sua “maior atração” (imagem A). Tanto a EMBRATUR cujos materiais foram apresentados na figura 2, quanto as empresas privadas (como as que foram apontadas na figura 1) apresentavam uma circularidade e homogeneidade discursiva em relação à difusão da ideia de generificação da cidade como dispositivo de nacionalidade.

Figura 2.

A, EMBRATUR, “A maior atração”, Rio, Samba e Carnaval, n.º 2, 1973. B, EMBRATUR, “Rio, é sol é cio”, Rio, Samba e Carnaval, n.° 11, 1982. C, EMBRATUR, Copacabana, Rio Service n.º 18, nov. 1983. Figuras D e E também são parte do material de divulgação da EMBRATUR, Brasil Tour Guide, 1977

Figura 2.

A, EMBRATUR, “A maior atração”, Rio, Samba e Carnaval, n.º 2, 1973. B, EMBRATUR, “Rio, é sol é cio”, Rio, Samba e Carnaval, n.° 11, 1982. C, EMBRATUR, Copacabana, Rio Service n.º 18, nov. 1983. Figuras D e E também são parte do material de divulgação da EMBRATUR, Brasil Tour Guide, 1977

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As mulheres são representadas geralmente de costas (imagens A, B, C, D e E) de modo que, não lhe seja atribuída identidade. Para que o efeito de “paraíso sexual” fosse efetivado era necessário colocá-las por toda a parte como figuras comuns, por isso muitas vezes não mostram o rosto, ou ele está escondido ou não há referência aos nomes dessas mulheres, identificando-as apenas como “garotas de Ipanema”, “cariocas” ou “musas da praia”. Elas apenas eram dispostas como personagens-fetiche dentro de uma lógica normativa mais ampla. Nesse contexto, a bunda servia como signo, como elemento que passava a dar sentido a esse corpo, não exatamente a fim de individualizá-lo, mas ao contrário, tornava a própria bunda um personagem visual que garantia a manutenção dessas fantasias neorromânticas sexo-raciais.

Enquanto a pornotopia44 da revista Playboy estadunidense criava novos códigos de tecnologia, de interioridade, de prazer e de consumo a fim de subjetivar uma nova masculinidade proveniente do pós-guerra, o pornonacionalismo brasileiro foi explorado para reelaboração de uma economia de gênero onde se colocavam em jogo códigos de brasilidade associados ao espaço público, a sexualidade, pornografia e a bioestética. O sistema de representação nacional da época recriava as utopias sexuais tropicais em um regime de espacialização pública, sugerindo o encontro do sexo fácil nas praias da Zona Sul da cidade. Isso reforçava estruturas de poder incorporadas através práticas sociais por meio das diferenças de raça, de gênero que interferiram diretamente na disseminação de signos, de imagens e de produtos.

A criação de uma norma reguladora que associava corpo e espaço (local-global) mirava tanto aquilo que se pode subjetivar em um corpo, como a uma população inteira a quem se designava aplicar um modelo de verdade. O corpo, motor biopolítico dessa disputa, foi alvo da manutenção de representações sobre o privilégio da circulação na cidade, que tinha a função de subjetivar enunciados e práticas sobre o Brasil desenvolvido. “As mulheres mais bonitas do mundo”, “o corpo mais desenvolvido do mundo”, possibilitavam que a relação entre beleza e tecnologia se associassem ao Brasil.

Com a transformação que a cultura promoveu junto à economia nos anos 70, a farmacopornografia45 poderia ser capilarizada na relação que estabelecia com as tecnologias de comunicação, com o espaço e com o prazer. A partir desses novos códigos no modelo de capital, um novo corpo emergia inaugurando a relação entre capitalismo e identidade nacional: o tecnocorpo.46 O tecnocorpo figurou como um novo dispositivo biopolítico da soberania nacional.47 O tecnocorpo nacional surgia com o fim de promover ficções políticas e modelos de verdade, impondo assim um sistema de normalização de comportamentos, de cuidados e de afetos que negociavam questões de raça e de sexo. Esse dispositivo biopolítico figurava como uma regulação da “espécie nacional”. Se de um lado, o poder gerenciava o nascimento, a morte, a fecundidade, a morbidade, a migração do corpo nacional, de outro, as práticas, os cuidados e os comportamentos de normalização fizeram com que ele operasse com técnicas de eficácia, de produtividade e de representação.

O estatuto de verdade que o corpo teatralizava poderia incorporar as fantasias sobre soberania nacional, munindo-se de significados inscritos em uma linguagem de espacialização atravessada por novas relações de poder e de saber que topologizavam a materialidade do corpo. O corpo nacional permitiu a reterritorialização do Brasil como também uma categoria bioestética, o que possibilitou nos anos 80 o avanço do turismo médico voltado para a cirurgia plástica.48

Nesse processo, “a Garota de Ipanema”49 surgia como um modelo turístico-mercadológico que buscava a subjetivação do seu caráter bioestético, tornando-o uma expressão da brasilidade que se expressava como uma utopia sexual pornotrópica50 remodelada. A fábrica de imagens tornou a brasileira (ou carioca) uma potencial parceira sexual, disponível e dócil.

Historicamente as mulheres negras, indígenas e mestiças foram as grandes personagens das narrativas nacionais51. A mulata incarnava todos os atributos que eram também associados à mestiçagem: a lubricidade, a volubilidade e a amoralidade. A mulher negra “branqueada” na literatura, acessava imaginários fundamentados nas teorias científicas do século XIX que associavam miscigenação ao subdesenvolvimento e a hiperssexualidade. Os pesquisadores brasileiros entendem que essas representações literárias privilegiam um fluxo de categorias não polares como branco e negro. Haveria assim, uma escala cromática, onde as classificações sociais também interferem para definir um ou outro corpo dentro desses polos opostos.

A bunda (operando a negritude e/ou a branquitude, o sexo biológico e o gênero) adquiriu significados diferentes junto a paradigmas, a saberes cientificamente guiados e a projetos políticos que regularam o corpo nacional. Enquanto, nos séculos XVIII e XIX, a bunda sugeria ser um dos códigos operadores da negritude implicando uma associação entre animalidade e hiperssexualidade (ou seu oposto)52, a bunda de meados do século XX encontra também nos padrões de branquitude53 uma nova regulação sexopolítica54 do corpo nacional. A sexopolítica é uma das formas de ação da biopolítica atual, no qual as feminilidades e masculinidades, os órgãos sexuais e as sexualidades são colocadas como ferramentas do poder.

O que tornou, a partir dos anos 70 a bunda como um modelo de beleza e nacionalidade através “Garota de Ipanema” foi sua relação imediata com o consumo, que figurava em representações reais de um público consumidor elitista, branco e hegemônico. A emergência de um público consumidor jovem55 e as preocupações do regime civil-militar acerca do novo estilo de vida (atravessados por gênero e sexualidades) que buscava proteger o mundo heterossexual, branco e divulgador do Brasil moderno.

Entrevistas publicadas pela revista Propaganda na década de 1980 deixam claro que o negro não era visto como igual em relação aos brancos.56 Os publicitários muitas vezes reconheciam a existência do racismo por parte de agências e anunciantes, contudo não buscaram extrapolar os elementos de mercado e enfocar, por exemplo, temas como direitos fundamentais ou tratamento igualitário. A associação preto/pobre parecia dar conta da questão, e eximia dos profissionais qualquer responsabilidade. Essa relação entre negritude e pobreza era fundamento para a ideia de que o negro estaria fora do mercado consumidor (e dos anúncios) por ser pobre. Só mais tarde, em meados dos anos 90, indicadores passam a falar sobre o mercado consumidor negro e isso muda parcialmente a propaganda.

As mulheres negras, apesar de supostamente serem inventadas como “musas literárias”, nunca foram efetivamente incluídas como um padrão de beleza fora do Carnaval. Esse imaginário que tornou as “mulatas” intermediárias da formação nacional, na prática, não só apagou os estupros sofridos pelas escravas, como também era bastante sexista na forma como representava as mulheres negras. As mídias, as excluíam como modelos de beleza e também relegavam à elas papéis subalternos em novelas ou em propagandas.57 Além disso, as “mulatas” caracterizavam a violência de gênero incorporada nas fantasias neocolonais sobre a hipersexualidade racial. De modo que, elas eram muito mais antimusas,58 e não musas do Brasil, uma vez que faziam “parte de um contingente de mulheres que não são rainhas de nada, que são retratadas como antimusas da sociedade brasileira, porque o modelo estético de mulher é a mulher branca”.

Apagadas pelo racismo estrutural brasileiro de um projeto estético que efetivamente a incorporasse como consumidora, a mulata foi refabricada, a partir dos anos 70, para ser atribuída como trabalhadora de uma cultura visual que se reinventou no soft porn através do qual traduziu narrativas sobre a brasilidade.

Na década 1930, a literatura59 codificou na mulata uma proposta ética e estética de mediação do processo de mestiçagem, sem que de fato ela fosse incorporada pelas tecnologias de representação como uma possibilidade estética positiva. Em resumo, essa mulher negra era uma personagem imaginada, embora pouco figurada. Através do enorme alcance e projeção que a expansão as mídias conquistaram nos anos seguintes a 1964, a mulata consolidou uma imagem e a materialização de um corpo. Inventada em meados dos anos 30 através de um modelo discursivo que frequentemente especializava seu corpo junto ao Nordeste brasileiro, a mulata foi reapropriada pelo pornonacionalismo dos anos 70, através de narrativas soft porn e do universo discursivo do samba e do Carnaval carioca.

Mas, se a “Garota de Ipanema” e a mulata do Carnaval deveriam ter um corpo igualmente fabricado pelas tecnologias estéticas, o que marcava a diferenciação entre elas eram a temporalidade e a espacialidade. A fim de construir parte da memória nacional, os sistemas de signos que circulavam operaram em vários tempos e espaços, que muitas vezes eram sobrepostos. Nesse sistema, a “Garota de Ipanema” estava presente no Carnaval, mas a mulata praticamente nunca estava em Ipanema. Ela era um personagem que aparecia como parte de um sistema simbólico que negociava imaginários sobre a tradição e foi mantida nesse lugar. A divulgação do Carnaval enquanto produto nacional acionou um tempo ahistórico, como visto na Imagem 3, onde pretendia-se reinventar uma tradição nacional, diferentemente da moderna Zona Sul, que multiplicava seus signos tecnológicos do presente.60

Figura 3.

EMBRATUR, capa da revista Rio, Samba e Carnaval, n.º 3, 1974

Figura 3.

EMBRATUR, capa da revista Rio, Samba e Carnaval, n.º 3, 1974

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O tempo ahistórico foi reforçado por uma visão orientada no resgate do folclore nacional, ou seja, parte de manifestações “tradicionais” que fundaram a sociedade brasileira. A “mulata” da imagem acima, é um dos inúmeros exemplos que apresentam uma personagem em grande parte com o fim de exotizá-la – de modo que as representações a seu respeito em geral envolvem fantasias, plumas, adereços pitorescos como o colar de osso de um animal selvagem, como visto na imagem acima. A mulata do Carnaval se desloca da Ipanema high tech, dos biquínis de lycra, para projetar um passado na memória nacional. A cultura negra, portanto, era relegada ao plano do passado, da tradição, ou do “imemorável”. Nesse sentido, o Carnaval teve a função simbólica de ser uma matriz operadora da vida social brasileira sobre a qual se estendiam e articulavam ramificações e subprodutos que deveriam igualmente serem consumidos.

As estratégias mercadológicas-turísticas miravam o homem estrangeiro ou turista brasileiro para que ele experimentasse o nacionalismo cultural, a fim de reviverem fantasias e fetiches racializados que se tornaram parte de narrativas hegemônicas sobre a cultura nacional. A assimilação cultural promovida pelos dois polos de contato branco e preto também permitiram reinventar o mito democrático da mestiçagem através de regime visual soft porn e heterossexual.

Diferente da garota que passa seu tempo se bronzeando em Ipanema, a mulata majoritariamente representada, dança. Nas casas de shows, no Carnaval, ou em feiras internacionais a mulata que dança era a mulata que trabalhava. A economia visual não a tornava uma beneficiária da cultura do ócio e do lazer, o mais “alto grau da civilização”,61 mas a situava como trabalhadora, que produzia, organizava e participava da competição do Carnaval e também era negociada como um signo do pornonacionalismo em eventos ao redor do mundo. A mulata era a principal personagem proletarizada nesse regime disciplinar que comercializava culturas visuais nacionalizadas, a ponto da sua própria raça e gênero serem atribuídos como “profissão”. A “mulata profissional” deveria incorporar os significados transmitidos através da ideia da mediação sexual do processo mestiçagem (com o homem branco) em um regime político que mercantilizava suas expressões de nacionalidade.

O Carnaval encontrava na mulata um produto midiático perfeito para o pornonacionalismo, uma vez que divulgava as fantasias “democráticas” nacionais através das trocas sexuais, ao mesmo tempo em que reforçava uma cultura composta de mulheres seminuas, sexo disponível e estereotipação das expressões homossexuais. A aliança da ideologia nacional junto à economia de gênero hegemônica garantiu a manutenção da imagem brasileira no exterior como um paraíso do sexo fácil.

No fim dos anos 70 e início dos anos 80, os espetáculos com mulatas se ampliaram e se rearticularam dando respaldo a uma cultura que fetichizou raça e espetacularizou as manifestações da cultura popular. Havia várias modalidades de shows de “mulatas”,62 mas o que havia de comum entre eles era que esses espetáculos deveriam adotar a linguagem do striptease.

Ao tirar a roupa a “mulata” deixa de ser representada enquanto “baiana” e se transforma “carioca” quando se torna a imagem nua do Carnaval. Na imagem final, a personagem fica completamente desnuda, de costas, com um carimbo com o logotipo da Brasil Export nas nádegas. Essa marca mostra como a bunda estava sendo negociada como signo nacional e a mulata deveria capitanear as fantasias sexo-raciais sobre a colonização. O logotipo da Brasil Export nas nádegas, era o signo sob o qual os shows encontravam seu ápice. Assim, o envolvimento do homem branco (em geral estrangeiro) era parte da narrativa de inserção do observador que nesse momento se tornou também agente de uma teatralização de gênero, remetendo ao imaginário colonial e integrando a mulata como mediadora entre dois polos: o negro e o branco. Como se vê na figura abaixo (fig. 4), o figurinista Alceu Penna desenhou as roupas das personagens em uma escala evolutiva que mirava a nudez como o produto final do espetáculo Brasil Export.

Figura 4.

Gabriela Ordones Penna, “Que mulata é essa? As ilustrações de Alceu Penna para o show Brasil Export (1972)”, Revista Dobras v. 9, n.° 20 (2016)

Figura 4.

Gabriela Ordones Penna, “Que mulata é essa? As ilustrações de Alceu Penna para o show Brasil Export (1972)”, Revista Dobras v. 9, n.° 20 (2016)

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Enquanto, a mulata era representada junto à tradição do Carnaval, as tecnologias de representação nos anos 70 e 80, reinventaram um novo modelo cromático para conceituar a brasilidade através do consumo. Esse modelo buscou, sobretudo, reestruturar a antiga associação literária da mulher negra ou mestiça, num modelo discursivo que usava a branquitude. No campo dos estudos culturais, inúmeros autores pesquisaram em profundidade o papel da branquitude como um locus privilegiado e produtor de exclusão. Para isso, esses autores entendem que a branquitude é produzida de maneiras diferentes dentro de uma variedade de espaços públicos e são igualmente atravessados por categorias de classe, de gênero, de sexualidade e de etnicidade.

Amparada sobre ideais de branquitude, a garota de Ipanema carregava novos signos que reinterpretam padrões cromáticos dentro da esfera da branquitude. O bronzeado surgia como uma nova perspectiva para a branquitude do Brasil neoliberal e pós-eugênico. Fabricado pelas tecnologias farmacológicas oriundas da iniciativa privada, o bronzeado, flertava com um tipo de morenidade sui generis que efetivamente era branca. Assim, ao inventarem a garota de Ipanema como um modelo do novo corpo nacional, inauguravam também novas maneiras de teatralizarem antigos imaginários sobre a erótica colonial e suas fantasias sexuais, mas amparadas em um sistema valorativo branco.

Desta forma, os dispositivos de poder disseminaram a garota de Ipanema negociando estratégias locais e globais de significação do corpo nacional. No Brasil, a comercialização, a elaboração e a ritualização das técnicas e modelos de beleza bronzeada circulavam através das práticas de consumo, onde se codificavam também as estratégias de fabricação de uma escala cromática de beleza branca/bronzeada aceita. Junto a elas, o poder promovia também um sistema de comportamentos e valores que regulava os limites entre o corpo bonito e aceito. Então, cada indivíduo poderia negociar as suas próprias táticas de representação de si através da moda, do corpo e do consumo. Em contextos globais, as obsessões pornotrópicas poderiam ser mantidas em um sistema que fazia inferência à racialização (negra) colonial a partir da ideia genérica de “morenidades”, sem efetivamente ser condicionado pela negritude, priorizando códigos de consumo das classes médias brancas. Tudo isso poderia ser expresso através do corpo nacional, suas formas perfeitas casadas com a farmacopornografia e seu eficiente sistema de signos e mercadorias “nacionalmente” elaboradas.

Entretanto, para que esse conjunto de elementos fizesse sentido era necessário investir na elaboração de uma série de enunciados para que ele fosse subjetivado nas práticas cotidianas. Assim, a garota de Ipanema surgia como a invenção capaz de recriar e circular imaginários sobre o Brasil. O que se observou a partir da construção da “Garota de Ipanema” como símbolo local-global foi uma tentativa de tornar essa “identidade” possível e indicada hegemonicamente para toda mulher.63 Para isso, se fortaleceu um complexo sistema de representação audiovisual, que consagrou a mulher da praia como um ideal de sexo e de beleza. A ideia chave desse processo foi construir uma identidade sem rosto, onde cada garota traria em si a “natureza sexual” e aberta para intercâmbios sexuais.

O espaço sexual do Rio de Janeiro midiaticamente produzido e consumido tinha uma função altamente disciplinária onde a cidade virtualmente sexual traduzia novos códigos para uma economia de gênero que conectava corpo e tecnologia através do consumo. A intenção da imagem talvez não fosse diretamente atrair o desejo sexual dos leitores, mas sobretudo, acionar uma dimensão erótica das práticas de consumo que operava com um significante de gênero que fica mais claro porque acionava um imaginário próprio ao universo da masculinidade.

Na figura 5, observamos a mulher como “criadora” da cidade do Rio de Janeiro, uma vigilante do hedonismo. Nela se percebe um exercício de elevação e sacralização da mulher brasileira, estrategicamente colocada no lugar da figura do Cristo Redentor, um patamar altíssimo de devoção, mas ainda fabricada, transcendente e inatingível. A imagem sugere uma dupla relação: a cidade é uma criação divina, assim como a mulher, criatura. No lugar do Cristo, ela de braços abertos, recebe, oferece a cidade e protege “gringos”, cariocas e insinua toda a sensualidade da “mulher brasileira” enquanto imaginário do espaço da cidade tornada mulher.

Figura 5.

“Criatura e Criação”, Rio Samba e Carnaval, n.º 15, 1986 (fonte: Renato Paes Barreto)

Figura 5.

“Criatura e Criação”, Rio Samba e Carnaval, n.º 15, 1986 (fonte: Renato Paes Barreto)

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Se atribuir um sexo e uma natureza biologicamente fundada são atos performativos, a representação da cidade enquanto teatralização dessa dinâmica permitiu também que a criadora, se tornasse criatura, incorporando e subjetivando identidades, construindo corporalidades, tecendo sentidos nas curvas do seu corpo, atravessadas por distâncias sociais de raça, classe e território, produzindo significados e agenciando o uso desse corpo nos espaços da cidade.

Como estratégia de biopoder,64 a normatização do corpo, implicou a ideia de que cada órgão tinha uma função que se tornava parte de uma estratégia de territorialização e biologização das partes e de suas funções “naturais”. A bunda para esses dispositivos culturais não poderia ser vista como um órgão sexual, uma vez que a priori não teria “função” dentro dessa lógica normalizadora hétero-capitalista, onde cada parte do corpo teria uma valoração reguladora e produtiva. Dentro da lógica heteronormativa que é paralela ao capitalismo, o ânus foi atribuído enquanto funções fundamentais a eliminação de excrementos e o sexo heterossexual (com corpos femininos).

Nessa estrutura reguladora, não caberia ao ânus em corpos masculinos ter prazer homossexual. A bunda, pelo contrário, foi direcionada discursivamente a ter outro sentido. Ao atribuir sexo (e gênero) a uma possível genitália, passou-se a definir a identidade sexual mais indicada (feminina), omitindo o sexo homossexual e redirecionando para sexualidade mais indicada, a heterossexualidade não-procriativa. Permitindo assim, o lugar da bunda no modo de produção, que recria nessa economia visual pós anos 60 um imaginário sócio espacial que integra sexo, gênero, cidade e consumo. Ao assegurar uma função para bunda, dentro das estruturas regulatórias do corpo feminino, a heterossexualidade não-procriativa garante também a manutenção da heteronormatividade como política visual espacializada. Portanto, temos de um lado código-operador do biopoder e de outro bioespaço.65

Deste modo, nesse momento do Brasil, a bunda se tornou um símbolo para um imaginário que era tanto estético – porque foi fruto do consumo visual – mas que era ao mesmo tempo ético, no sentido de operar segundo uma moral reguladora da sexualidade. Como exemplo da economia do consumo e do entretenimento que estimularam uma nova forma de codificar os sentimentos e sentidos, os arcos da Praça da Apoteose (figura 6), projetados por Oscar Niemeyer,66 sintetizaram a função da bunda nessa economia de gênero. Criado em 1984, quando o Carnaval assumiu o papel de “maior espetáculo da Terra” – incitando a masturbação multimídia global como construções centrais na subjetividade moderna – a obra, um arco grande contendo dois arcos menores dentro, retratou o alcance que a bunda passou a ter na cultura de massa no Brasil e no mundo. O desenho faz lembrar as nádegas femininas em um biquíni do tipo fio dental, evidenciando a hiperssexualidade e a racialização ideológica67 da sociedade brasileira.

Assim, a ética do pornonacionalismo se reproduzia através de uma cultura heterossexual. É importante notar, em relação à divulgação dessa cultura straight nos anos 70 e 80 no Brasil, que as profundas transformações produzidas pela indústria da cultura e os dispositivos de poder redesenharam o corpo nacional através de ferramentas do consumo visual. Nesse novo enquadramento simbólico, o corpo heterossexual e esculpido através das tecnologias foi definido enquanto nacional. Isso consequentemente produzia um complexo sistema de discursos: produtos, serviços, produções culturais e artísticas que produziram sentido e faziam com que a máquina de produção do capitalismo sexual distribuísse imaginários, intermediados pela bunda.

No Brasil se produz uma “cultura do corpo” ou uma “corpolatria”68 que o define e diferencia enquanto povo. Além dos inúmeros mercados que constroem corpos, vendem produtos biotecnológicos, cirurgias plásticas e biquínis de lycra, há também como intenção a invenção e produção de padrões normativos de sexo e de gênero. Certamente, esses territórios straight podem ser agenciados, bombardeados e desterritorializados, produzindo outras políticas queer de produção de corpos que desestabilizem as normas. Essa política de normatização visual permitia que a ética também se tornasse estética, uma vez que o cuidado excessivo corpo e da aparência implicava na vigilância e controle no espaço semiótico através da naturalização dos papéis sexuais, do que se entende como “órgãos sexuais”, da reprodução e etc.

O Rio de Janeiro vendia uma cultura pornográfica: uma pornotopia que parecia transgredir a própria sexualidade brasileira num período onde a censura e o controle do sexo estavam fortemente munido de códigos e limites. Na verdade, essa economia visual era gestada para simular uma suposta abertura democrática, enquanto o Rio de Janeiro era efetivamente monitorado pelos seus sistemas de inteligência e censura. Essas representações pretendiam conferir ao Rio de Janeiro uma ilusão visual que convidava homens de todo o mundo para desfrutar os benefícios do sexo acessível e democrático. O que estava em jogo era a negociação de uma teatralização erótica nacional; em suma, a projeção de uma utopia pública e pornográfica na qual o homem branco heterossexual era o receptor principal das imagens e onde também se designavam fluxos de circulação cartografados na relação sexo-espaço. A masculinidade baseada no consumo construía na vida urbana suas próprias fantasias sexuais sobre a cidade e a circulação do prazer. A capitalização da “natureza” brasileira operou através do espaço, da geografia, do corpo e da sua materialidade de gênero, de sexualidade e de raça, transformando-os em produtos nacionais.

Os dispositivos culturais através da produção e circulação de imagens soft porn conduziram uma ideologia moral através do consumo visual. Com a ascensão das lutas feministas, das demandas LGBTQIA+, dos debates de esquerda e dos movimentos contraculturais, foi acionado um sistema de circulação e produção de imaginários morais que pretendiam naturalizar papeis de gênero e normalizar o corpo “straight”. O pensamento normatizador define e territorializa a boca, a vagina, o ânus e a bunda. Esse entendimento é também próprio do sistema capitalista de produção e da própria concepção da Biologia enquanto campo de estudos a serviço do capital.69 Assim, pensar straight é ligar a produção de identidades de gênero a partes do corpo, tais como as genitálias. Desse modo, o sexo-gênero tem um lugar central na política e nas formas de governar.

As estratégicas políticas de ação dos dispositivos culturais implementaram, através do marketing sedutor e erótico da nudez, uma gestão do corpo straight a fim de atrair os cidadãos-consumidores através da tecnologia e do consumo, aliado à circulação das mídias com a expansão do mercado de bens simbólicos. Essa política visual desenvolveu a pornografia até transformá-la em uma prática social, que fosse normatizadora e mercantilizável.

As estratégias sexopolíticas dos dispositivos culturais consolidaram uma “estética do desnudamento” que só poderia se efetivar porque ressexualizou o espaço urbano, produzindo uma cultura visual. Esta campanha se fez através da valorização da pornografia como base do processo de “nacionalização” e capitalização do sexo. Para isso, transformou a “mulher brasileira” e sua bunda em categorias sexopolíticas, tornando a bunda em um potencial símbolo nacional sexualizado. O desnudamento se tornou um espetáculo público para consumo.

Se a iniciativa privada e as tecnologias de representação se uniram na regulação biopolítica do corpo nacional, eles também passaram a administrar a imagem do Brasil local e globalmente, de modo que o próprio Brasil se tornou:

  1. Um produto (através das mercadorias associadas à brasilidade);

  2. Uma marca (uma vez que a comercialização dessas mercadorias visava identificar os produtos e serviços de um “vendedor” específico, e simultaneamente diferenciá-lo da concorrência internacional) e finalmente;

  3. Uma empresa que comercializava biopolítica (elegendo, através da potência biológica do corpo perfeito, sua “natureza” enquanto raça e espécie).

Consequentemente, não só as mercadorias deveriam promover o tecnocorpo nacional, mas permitiu-se que o Brasil enquanto marca funcionasse também como uma fábrica transnacional de comercialização da sexopolítica nacional – uma empresa sexual que negociava o avanço civilizacional da espécie brasileira através da bioestética, promovendo uma inter-relação entre corpo e a pornografia como produtos de interesse do público consumidor local e global. Isso permitia a produção, a distribuição, a precificação e a materialização da biopolítica nacional através do corpo. Junto à ampliação dos imaginários sobre o corpo nacional mediava-se também os novos ideais sobre brasilidade que eram produzidos e distribuídos em série. Como a identidade nacional foi acionada conjuntamente às empresas, o tecnocorpo foi privatizado com a intenção de ser comercializado massivamente.

Assim, por meio dos canais de comunicação, se capilarizava um corpo altamente tecnológico, que havia apagado a gordura e os traços de envelhecimento, pois havia sido produzido no “mais sofisticado grau” de desenvolvimento do capital. Era bronzeado, pois havia eugenicamente fabricado uma nova “espécie” nacional que alternativamente criava novos registros de racialização e mestiçagem frente ao branqueamento e às incertezas morais e físicas que cercavam a miscigenação.

A fábrica sexopolítica nacional disseminou o corpo nacional (por meio da bunda) com tanta força e potência nas cartografias locais e globais que inúmeras empresas privadas ao redor do mundo poderiam fabricar, importar, exportar e rematerializar novos registros sobre a bunda nacional (que também eram registros sobre o Brasil).

O Brasil servindo de laboratório sexual do neoliberalismo, implementava modelos biopolíticos que renegociavam a subjetivação de comportamentos e cuidados atravessados por sexo e por branquitude. Nesse fluxo ininterrupto de representações que circulavam ao redor do mundo, era possível comercializar, nacionalizar imaginários e converter imagem em capital, biologia em tecnologias de representação e pornografia em heteronormatividade.

No cruzamento dessas linhas de produção de sentido que disseminavam fluxos de mensagens sobre o Brasil, as tecnologias de reconstrução corporal nacionalizam a bunda e desterritorializam a identidade nacional. Assim, corporações e empreendedores individuais privatizaram a correção das formas, aplicaram métodos de corte e injeção de gordura, remodelaram biquínis, mudaram a modelagem das roupas para as brasileiras, desenvolveram técnicas de retirada de pêlos ao redor do ânus, tecnologias de extração de celulites, cremes, cintas modeladoras e exercícios, se baseando em imaginários e verdades que traduziam a bunda como um signo de uma “civilização das formas”.70

O interesse do público consumidor pela ficção do corpo brasileiro despertava a ampliação das tecnologias de fabricação cosmética para reprodução e materialização de representações e enunciados. Iniciativas privadas espalhadas pelo mundo poderiam vender e também recriar o Brazilian way of life, rematerializando os anseios nacionais de converter espaço, prazer e tecnologias. Desse modo, inventavam também novas técnicas e modalidades de correção cirúrgica, associadas às tecnologias de representação da brasileira, como por exemplo a Brazilian butt lift. Simultaneamente, se criavam diferentes produtos para a moda praia e sua poética biosintética que casava lycra com a pornografia. A bunda era o interpretante perfeito para uma economia do sul do mundo que nacionalizava suas tecnologias de representação junto à farmacopornografia.

O consumo do corpo nacional poderia se materializar através de produtos e a forma mais fácil de fazer isso foi transformá-lo em um signo acessível, que traduzia rapidamente os modelos de verdade sobre o Brasil. A bunda, que remetia às fantasias eróticas coloniais e ao mesmo tempo significava o avanço civilizacional da espécie nacional, era o signo perfeito para traduzir os avanços eugênicos e mobilizar as obsessões sexo-coloniais (sobre racialização e hiperssexualidade). Mercantilizando a negritude, reinventado a branquitude e simultaneamente, mantendo o apelo sexual, a bunda traduzia facilmente os anseios do poder que fabricava o pornonacionalismo enaltecendo a vida biológica nacional através do corpo perfeito.

As tecnologias de poder miravam a representação do corpo nacional através de um olhar que se voltava para a medicina cosmética, onde mercado, midía, aparência, pornografia, consumo e identidade nacional caminhavam conjuntamente. A bunda modelar dos anos 70 era livre de gorduras, celulites, estrias, flacidez, e se munia de códigos de representação que eram idealmente imaginados, mas buscavam ser materializados em massa. A bunda brasileira se tornava um signo possível junto a uma semântica que lhe atribuía valor junto ao neoliberalismo, à medicina cosmética sexual, à indústria cultural e à nacionalidade.

Essa relação permitiu que um novo sistema de percepção associasse bunda e identidade nacional, promovendo o Brasil como uma empresa sexual global que funcionava como uma fábrica sexopolítica de produção do corpo. O que implicou no surgimento de uma série de mercadorias, de empresas, de instituições e de tecnologias que fabricavam o corpo sintético (em série) enquanto representação e ideal de soberania nacional. A bunda emergia como um símbolo interpretante de uma cultura que se voltava para a fabricação biotecnológica de uma “natureza” brasileira. A implementação do tecnocorpo como modelo estético nacionalizado permitiu que a bunda fosse subjetivada junto ao tecnocorpo como paradigma de beleza, saúde, branquitude, estética, mídia, capital e nação. Desta forma, as tecnologias de representação nacionais miraram tanto o corpo quanto a bunda hegemonicamente, como condicionantes da cultura brasileira. Para regular o corpo, era necessário ser vigilante à bunda e vice-versa. A gestão e o cuidado de ambos eram relacionais, uma vez que o tecnocorpo era signo para a bunda e a bunda para o tecnocorpo.

A vitória na implementação da relação entre tecnologia e bunda permitiu que o imaginário a respeito do Brasil fosse reinventado globalmente através de novas representações. Logo, a medicina estética brasileira passou a se tornar uma referência internacional, assim como o turismo da cirurgia plástica. Mais do que isso, com a ascensão das técnicas de reconstrução estéticas a bunda passou por uma mutação pós-humana onde corpo e máquina se condensaram. No final do século XX, as máquinas tornam ambíguas as relações binárias entre mente e corpo, natural e fabricado, que geralmente eram associados a organismos e máquinas.71 Entretanto, a partir dos anos 70, as máquinas estavam finalmente vivas. Os corpos se tornaram codificados através da determinação tecnológica de modo que o sexo, a sexualidade e a reprodução passaram a protagonizar os sistemas high tech que tornaram a agir sobre nossa imaginação e agenciamentos pessoais e sociais. A bunda era recriada enquanto tecnobunda, associada à produção farmacológica, midiática e industrial.

O bumbum brasileiro poderia ser comercializado em escala, abrindo uma linha evolutiva complementar que tornou possível fabricar e revender em circuitos transnacionais “a natureza” estética nacional. O pornonacionalismo poderia finalmente capitalizar a eugenia brasileira, através da comercialização da cultura visual mediada pela bunda. Mas a tecnobunda, produzida através de complementos plásticos (silicones, hormônios, procedimentos estéticos e principalmente ginástica72) antropofagicamente engoliu a potência mágica que a naturalizou. Ela não simplesmente copiou a estética que a inspirou, ela a substituiu. Ela reinventou e ultrapassou sua “superioridade eugênica”. Deste modo, transformou a ideia de que havia na bunda uma essência, uma natureza que a produziu e lhe da forma, possibilitando codificar sexo, gênero ou raça. A bunda se tornou trânsito. A farsa da natureza biológica da bunda revelou também a mentira da diferença sexual num mundo estruturado como heteronormativo.

Se o pornonacionalismo instituiu a bunda como mediação de uma economia de gênero, sexo e de raça, ela no lugar de agente traiu a lógica que a implementou. Ela não se tornou apenas um acessório de silicone, gordura remanejada, ou hormônios, ela operou alterando a origem “real” do órgão que supostamente se inspirou. Preciado discorre sobre a autênticidade do dildo que provocou efetivamente uma transformação na natureza biológica do pênis.73 Produto da transformação entre imagem, pornografia e cultura de massa, a bunda negou a natureza que historicamente codificou seus significados, uma vez que se tornou uma tecnologia junto às transformações do capitalismo. Isso lhe permitiu que se comportasse como uma máquina ciborgue, não lhe cabendo mais o estatuto da natureza, mas sim sua conversão à tecnologia.

Title of this essay in translation: Butt: An Interpretative Sign of New Brazilianness in the '70s and '80s in Brazil

1.

Ver Renato Ortiz. Cultura brasileira & identidade nacional (São Paulo: Ed. Brasiliense, 2012), 152.

2.

Ver Otavio Ianni, Imperialismo e cultura (Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1976).

3.

O novo regime político fundou-se na aliança das Forças Armadas com os latifundiários e os grandes empresários, nacionais e estrangeiros. Essa junção política possibilitou duas experiências pioneiras na América Latina: o terrorismo de Estado e o neoliberalismo capitalista. A partir do exemplo brasileiro, vários outros países latino-americanos adotaram nos anos seguintes, com explícito apoio dos Estados Unidos, regimes políticos semelhantes a esse. Ver Fabio Konder Comparato, “Compreensão histórica do regime empresarial-militar brasileiro”, Brasil de fato: uma visão popular do Brasil e do mundo, São Paulo, 11 março 2014, acesso dia 22 de abril de 2017, http://www.brasildefato.com.br/node/27692.

4.

Ver Antônio Rubim, Lindalva Rubim, “Televisão e políticas culturais no Brasil”, Revista Usp (São Paulo), n.° 61 (março/maio 2004): 19.

5.

Ver Fábio Crocco, “Sobre o papel desempenhado pela cultura no projeto neoliberal”, Revista contemporânea, v. 7, n.° 1 (jan.–jun. 2017): 154, 149–66.

6.

Ver Jonathan Beller, Cinematic Mode of Production: Attention Economy and the Society of the Spectacle (Hanover, NH: Dartmouth College Press, 2006), 352.

7.

Getúlio Vargas, durante os anos 30 e 40, criou e reformulou uma série de instituições para dar início a implementação da indústria cultural no Brasil e exercer controle sobre a informação e sobre a identidade nacional. Assim, em 1931, ele criou o Departamento Oficial de Publicidade (DOP) e a partir disso traçou as linhas gerais de uma política de difusão do rádio e da imprensa. Ver Roberta Faria Lima Ferreira, “A sedução das massas: uma introdução histórica a indústria cultural e sua ascensão nos anos 30”, Revista Dia-Logos (2004): 4.

8.

Esta expansão foi protagonizada pela indústria de transformação que no total cresceu a uma taxa de aproximadamente 8,5 por cento ao ano. Na realidade, o crescimento brasileiro no período foi bastante pautado pela expansão da indústria de bens duráveis de consumo que cresceu à taxa média de 15,3% ao ano, chegando a atingir taxas de crescimento superiores a 23% ao ano nos momentos de ciclos expansivos que aconteceram no período (1955–62 e 1967–73). Da mesma forma os setores de bens intermediários e de bens de capital ascenderam a taxas médias elevadas (10,5 e 12,8% ao ano, respectivamente). Essas indústrias desenvolveram-se com grande dependência – direta ou indireta – do capital internacional ou multinacional. Ver Vilmar Faria, “Desenvolvimento, urbanização e mudanças na estrutura do emprego: a experiência brasileira dos últimos trinta anos”, em Bernardo Sorj, MH Tavares, Sociedade política no Brasil pós- 64 (Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008), 385.

9.

Ver Renato Ortiz, Cultura brasileira & identidade nacional (São Paulo: Ed. Brasiliense, 2012), 83.

10.

Foi criada em 1966.

11.

Ver Otávio Ianni, “Estado e a organização da cultura”, Encontros com a civilização brasileira, nº1 (julho de 1978): 217–18.

12.

Ver Eric Fassin, “Brasil: o laboratório interseccional do neoliberalismo”, Revista Cult, ed. 250, Editora Bregantini. São Paulo (outubro de 2019). O autor fala sobre como atualmente o Brasil é palco de um laboratório interseccional do neoliberalismo, o presente artigo mostra, por outro lado, como isso também já acontecia nos anos 70 e 80.

13.

Ver Julio Pereira de Carvalho, “Empresariado e ditadura: contribuições para uma análise de longo prazo do processo de neoliberalização brasileiro (1967–1978)”, Marx e o Marxismo v. 8, n.° 15 (2020): 314–15.

14.

Ver Ian Bruff, Cernal Burak Tansel, “Authoritarian Neoliberalism: Trajectories of Knowledge Production and Praxis”, Globalizations, Authoritarian Neoliberalism: Philosophies, Practices, Contestations, special issue, vol. 16 (2019): 233–44.

15.

Ver Alfredo Saad-Filho, Lecio Morais, Brasil: neoliberalismo versus democracia (São Paulo: Boitempo, 2018), 97.

16.

A ruptura com os direitos humanos básicos se tornava cada vez mais explicita no Brasil por conta do terrorismo de Estado. Fora do Brasil, havia uma preocupação com os diversos tipos de perseguição impostos pela ditadura militar-empresarial. Portanto, difundir imaginários sobre um Brasil democrático espelhava, na verdade, sua má imagem internacional. Louise Alfonso, “EMBRATUR: Formadora de imagens da nação brasileira”, tese de mestrado, Campinas, UNICAMP, 2006.

17.

Guy Debord, “A sociedade do espetáculo,” prefácio à 4.a edição italiana, A sociedade do espetáculo. Comentários sobre a sociedade do espetáculo, trad. Estela dos Santos Abreu (Rio de Janeiro: Contraponto, 1997), 12.

18.

A chamada da propaganda remete a música de Jorge Bem “País Tropical” que narra vários elementos centrais da “brasilidade”: natureza, Carnaval, tropicalidade, samba e a “nega chamada Teresa”, uma representação da mulher brasileira.

19.

Ver Álvaro Fernãndez-Bravo, “Latinoamericanismo y representación: iconografías de la nacionalidad en las exposiciones universales”, em La ciencia en la Argentina entre siglos: textos, contextos e instituciones, comp. M. Moserrat (1889, 1900; repr. Buenos Aires: Manantial, 2000), 171–85.

20.

Ver Juan David Murillo Sandoval, “De lo natural y lo nacional: representaciones de la naturaleza explotable en la Exposición Internacional de Chile de 1875”, Historia, n.° 48 (2015): 276.

21.

Ver Robert Park, “A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano”, em O fenômeno urbano, org. Otávio Velho (Rio de Janeiro: Zahar. 1979), 25, 134.

22.

Ver Maria Luiza Heilborn, “Corpos na cidade: sedução e sexualidade”, em Antropologia Urbana, org. Gilberto Velho (Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1999), 99, 93–102.

23.

Ver Ana Paula Brandão, “Um olhar bem-humorado sobre o Rio nos anos 20”, Cadernos da comunicação Rio de Janeiro, Secretaria Especial de Comunicação Social (2003): 6.

24.

Ver Vivian Ritter, “Espaço e biopolítica”, Polietica. São Paulo, v. 2, n.° 1 (2014): 112–37, em esp. 119.

25.

Ver Jaime Benchimol, “Reforma urbana e Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro”, em Jorge Ferreira, Lucila de Almeida Neves Delgado, Brasil Republicano, vol. 1. O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930 (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003): 231.

26.

Ver Lucas de Souza Leite, “Favelas: da exclusão à necessidade de urbanização”, Universidade Federal de Juiz de Fora, 2014, acesso dia 28 de março de 2021, www.ufjf.br/ladem/files/2009/10/Favelas-excluso-e-urbanizao.pdf.

27.

Ver Marcos Marques Pestana, “Regimes políticos e remoções de favela no Rio de Janeiro (1962–1973)”, em Empresariado e ditadura no Brasil (Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2020), 301.

28.

Ver Ana Camarano e Ricardo Abramovay, “Êxodo rural, envelhecimento e masculinização no Brasil: panorama dos últimos cinquenta anos”, TD 0621 - êxodo rural, envelhecimento e masculinização no Brasil: panorama dos últimos 50 anos (Brasília: IPEA, 1999).

29.

Ver Durval Albuquerque Júnior, A invenção do Nordeste e outras artes, 1.a ed. (Recife: Editora Massangana, 1999), 27, 327.

Ver Bennedict Anderson, Comunidades imaginadas, trad. Denise Bottmann (São Paulo: Cia das Letras, 2008), 336.

30.

Ver Benjamin Cowan, “Homossexualidade, ideologia e “subversão” no regime militar”, em Ditadura e homossexualidade: repressão, resistência e busca da verdade, org. James Green e Renan Quinalha (São Carlos: EdUFSCAR, 2018), 45, 330.

31.

Ver Cowan, “Homossexualidade, ideologia e “subversão”: 33.

32.

Ver Christopher Dunn, Contracultura: Alternative Arts and Social Transformation in Authoritarian Brazil (Chapel Hill, NC: The University of North Carolina Press, 2016), 195, 274.

33.

Ver Paul Beatriz Preciado, “Terror anal: apuntes sobre los primeiros días de la revolucíon sexual en Hocquenchem, Guy”, El deseo homosexual (Barcelona: Melusina, 2009), 147.

34.

Ver Paul Beatriz Preciado, Pornotopia: arquitectura y sexualidade en la guerra fría (Barcelona: Editora Anagrama. 2010), 147.

35.

Desbundar também pode ser interpretado como uma palavra bunda que deriva de bunda, com o prefixo “des” e o verbo “bundar” em português. Ver Ana Paula Garcia Boscatti, “A bunda e a “natureza nacional: A fabricação ‘sexopolítica’ da brasilidade nos anos 70 e 80” (tese de doutorado, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, 2020), 221.

36.

Ver James Green, Revolucionário e gay: a vida extraordinária de Herbert Daniel - pioneiro na luta pela democracia, diversidade e inclusão, 1.a ed. (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018), 378.

37.

Ver EMBRATUR, Tradução do discurso em inglês de Said Farhat, Presidente da EMBRATUR na ocasião da 45.a Congresso Mundial da ASTA, Rio de Janeiro, 27 de outubro de 1975.

38.

Ver Anderson Francisco Ribeiro, “A pornografia brasileira e a memória esquecida: revistas eróticas e pornográficas na ditadura militar (1964–1985)”, Revista Patrimônio e Memória, v. 12, n.° 1, (janeiro-junho 2016): 286–307.

39.

Mesmo com a “oficialização” da pornografia, o Estado continuou operando a censura, cortando imagens, impondo limites no que se podia mostrar e como. A lógica do que era permitido ou proibido nunca foi muito clara, o que se entende é que a pornografia não era um problema estrutural para o Estado, contudo os militares impunham diversos limites quando a nudez era individualizada.

40.

Pornochanchadas eram uma versão pornográfica das comédias cariocas que tinha origem no teatro rebolado dos anos 40. Nelas, se narravam histórias rodeadas de anedotas que abordavam o cotidiano nacional, através do universo carioca fortemente associado às representações do malandro, o jeito de falar e o comportamento estereotipado da vida urbana, eram usados como estratégias para dar o tom de humor às comédias.

41.

Ver Nuno Cesar Abreu, O Olhar pornô: a representação do obsceno no cinema e no vídeo, 2.° ed. (São Paulo: Alameda, 2012): 107, 264.

42.

Ver Paul Beatriz Preciado. “Multitudes queer: notes pour une politique des «anormaux»“, Multitudes 12 (Spring 2003): 17–25, www.cairn.info/revue-multitudes-2003-2-page-17.htm.

43.

Ver Garcia Boscatti, “A bunda e a “natureza” nacional”: 222.

44.

Pornotopia é um conceito de Paul Beatriz Preciado presente no livro Pornotopia, 120, 236. Para Preciado uma pornotopia tem como exercício principal a conversão de formas anteriores de consumo sexual que eram designadas a espaços privados como bordéis, transformando-as em representação e consumo visual. A pornotopia da revista Playboy criava novos códigos de tecnologia, de interioridade, de prazer e de consumo, a fim de subjetivar uma nova masculinidade proveniente do pós-guerra.

45.

A definição de farmacopornografia, segundo Preciado no livro Pornotopia é “un nuevo régimen de control del cuerpo y de producción de la subjetividad que emerge tras la Segunda Guerra Mundial, con la aparición de nuevos materiales sintéticos para el consumo y la reconstrucción corporal (como los plásticos y la silicona), la comercialización farmacológica de sustancias endocrinas para separar heterosexualidad y reproducción (como la pildora anticonceptiva, inventada en 1947) y la transformación de la pornografía en cultura de masas “.Ver Preciado, Pornotopia, 115.

46.

Tecnocorpo é uma “entidade multiconectada” que incorpora tecnologia através da gestão biomolecular da subjetividade. Ver Paul Preciado, Texto Yonqui (Madrid: Editorial Espasa Calpe, 2008), 40, 310.

47.

O tecnocorpo funcionava como um dispositivo produtor de rituais de verdade e subjetividade sobre o corpo nacional. Deste modo, relacioná-lo a ideia de soberania pressupõe estabelecer um conjunto de verdades sobre os sujeitos mais legítimos para as representações nacionais: as classes médias brancas de centros urbanos foram figuradas como os sujeitos enunciadores e receptores dos benefícios da sociedade política e jurídica.

48.

Denise Bernuzzi de Sant’Anna, “O imperativo da beleza no Brasil”, Confins, 26, Dossiê “Brasil, potência em questão”, 29 fevereiro de 2016, acesso o 6 de maio de 2021, https://doi.org/10.4000/confins.10741.

49.

A “carioca” figura como um modelo de beleza e modernidade atrelado a cidade do Rio de Janeiro desde o início do século 20, como mostra Claudia de Oliviera. “Rio femme – mulher Rio: a representação do amor e da sexualidade nas revistas ilustradas cariocas Fon-Fon! e Para Todos…(1900–1930)”. ArtCultura, Uberlândia, v. 10, n.° 16 (2008): 201–13. O projeto nacional modernizador de meados do século da continuidade a imagem do corpo da carioca elaborada como parte da cidade. Nos anos 70, com o avanço da cultura de massa, a imagem da carioca se transforma com a pornografia que se torna a linguagem da indústria do entretenimento. Mesmo dez anos depois do lançamento da música “A Garota de Ipanema” por Vinicius de Moraes e Tom Jobim, há uma continuidade na negociação desse modelo de beleza. Um exemplo disso está presente na matéria escrita por Vinicius de Moraes da revista Rio Samba e Carnaval nº1, (1972). Vinicius de Moraes fala sobre a mulher dez anos depois da música, afirmando que naquele momento “as garotas de Ipanema” haviam se multiplicado pelo bairro e estavam com o corpo mais bonito, desenvolvido e mais nuas que antes “visto que estavam estudando saúde e ultravioleta” (se referindo a produção do corpo e do bronzeado). Portanto, o modelo não se extingue nos anos 60, ele permanece como referência estética até os anos 80, como mostra o texto.

50.

As fantasias, os fetiches, as obsessões, as práticas sociais, as hierarquias de classe, o trabalho, a raça e o gênero colocaram o povo colonizado sob a erótica do alumbramento. Assim, os pornotrópicos de fato estabeleceram uma fantasia tropical, bem distante da realidade ecoando sobre as incertezas e inseguranças desses “Novos Mundos” e sobre os que habitavam por aqui. Ver Anne McClintock, Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial, trad. Plínio Dentizien (Campinas – SP: Editora UNICAMP, 2010), 600.

51.

Ver Mariza Correa, “Sobre a invenção da mulata”, Cadernos Pagu 6–7. Campinas (1996): 39.

52.

As teorias raciais, como a proposta por Gregório de Mattos, variavam em relação a ideias associadas à negritude. Ora sexualizada através de uma imagem associada à sedução do homem branco, ora desinvestida da condição de ser humano. Ver Angela Grillo, “De lasciva a musa: a representação da mulher negra em versos de Gregório de Matos a Mário de Andrade”, Scripta Uniandrade, Curitiba, PR, vol. 11, n.° 2 (2013): 76–96.

53.

O modelo eugênico de beleza elegia a bunda como um intepretante de nacionalidade. Para Hernani de Irajá, o modelo europeu de corpo feminino apresentava uma bunda volumosa. A proposta do médico era um modelo de beleza brasileira cuja bunda que fosse centímetros maior que aquela do cânone europeu. Ver Garcia Boscatti, “A bunda e a “natureza” nacional”, 283.

54.

Ver Preciado, “Multitudes queer”, 12.

55.

O nascimento de uma cultura juvenil aconteceu na década de 50 do séc. XX, visto que foram nestes anos que a cultura de massa passou a ser observada como uma realidade irrestrita, assim como a “produção” massiva de bens culturais voltados ao mercado jovem. Eliana Batista Ramos, “Anos 60 e 70: Brasil, juventude e rock”, Revista Ágora (Vitória), n.° 10 (2009): 3–20.

56.

Na pesquisa realizada por Carlos Augusto de Miranda e Martins, “O mercado consumidor brasileiro e o negro na publicidade”, GV Executivo, v. 14, n.º 1 (jan.-jun. 2015): 44–45.

57.

Lélia Gonzalez, “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, Revista Ciências Sociais Hoje (Anpocs), (1984): 223–44.

58.

Ver Sueli Carneiro, “Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”, Portal Geledes, 2003, acesso dia 9 de setembro de 2019, www.unicap.br/neabi/?page_id=137.

59.

Embora haja diversas referências literárias mesmo antes disso, a década de 30 fortalece as representações em torno da mulata como personagem nacional. São exemplos Rita Baiana de O Cortiço (de Aluísio de Azevedo) e Gabriela (de Jorge Amado), que consolidaram concepções hegemônicas do pensamento brasileiro e demonstraram como os autores têm dificuldade de fugir do ideal social e estético do branqueamento. Casa grande & Senzala de Gilberto Freyre e Menino de Engenho de José Lins do Rego também apresentam representações acerca da sensualidade da mulata.

60.

A sobreposição dos tempos acontece quando, por exemplo, o Carnaval é discursivamente cooptado para referir-se à modernização que era expressa através da tecnologia que circundava sua transmissão midiática presente nos carros, alegorias, investimentos e corpos.

61.

Em um dos documentos norteadores das políticas de turismo, os militares ressaltaram a importância da cultura do ócio e do lazer. A aposta no turismo e no ócio era uma aposta civilizacional. O entendimento do Estado era que o avanço civilizatório seria alcançado através da mecanização do trabalho e redirecionamento das forças humanas para o lazer e o ócio. Ver EMBRATUR, Política nacional do turismo (Brasília: Embratur, 1975), 75.

62.

Ver Gabriela Ordones Penna, “Que mulata é essa? As ilustrações de Alceu Penna para o show Brasil Export (1972)”, Revista Dobras v. 9, n.° 20 (2016).

63.

Certamente essa ideia de totalidade está submetida a uma lógica de branquitude e de classe social. As mídias e o mercado da beleza vão priorizar uma lógica de representação que quase anula a negritude enquanto beleza. Ver Denise Sant'anna, História da beleza no Brasil (São Paulo: Contexto, 2014), 202.

64.

Ver Michel Foucault, Estética, ética y hermenéutica: obras essenciales III (Buenos Aires: Editorial Paidós, 1999). O autor fala a respeito das tecnologias aplicadas às relações de poder, e as maneiras pelas quais elas operam na transformação dos indivíduos em sujeitos disciplinados e normatizados. O conceito de Foucault sobre tecnologias de poder é utilizado como chave interpretativa para analisar as relações de poder, imbricadas em relações de saber, de modo que essas relações se efetivam em práticas sociais historicamente constituídas. Tecnologias de poder estão associadas às noções de produção de comportamentos e de gestão da massa populacional. Consequentemente, elas têm seus registros relacionados aos estatutos da disciplina e do biopoder.

65.

Ver Ruy Moreira, “Bionergia, sentido e significado”, Revista da Anpege. v. 3 (Fortaleza, 2007): 30. Para Ruy Moreira (Bionergia, 30) há, a partir dos anos 70, uma reorganização espacial do capitalismo, sem direção pré-estabelecida, uma reorientação saindo de uma “base científico-técnica físicomecânica para a informático-bioengenharial” no qual as relações de produção se transferem da velha regulação com limites fixos “para a regulação sem fronteiras espaciais fixas e permanentes de espaço e saberes”. Dessa forma, essa reestruturação das novas forças produtivas oriundas da emergência da bioengenharia e das novas formas de regulação espacial ganham uma nova materialidade com a sua própria mobilidade territorial. Assim a reestruturação no modo de produção capitalista impacta o modo de organização tradicional do conhecimento, a organização dos espaços e das relações internacionais. A nova forma de espaço que assim vai surgindo – o bioespaço – reelabora também o biopoder como uma nova forma de exercício de poder.

66.

Como a arquitetura produz sujeitos sexuais, a obra de Oscar Niemeyer é centralizada na heterossexualidade como norma. As próprias narrativas do arquiteto salientavam a inspiração para seus trabalhos nas curvas das mulheres da sua cidade. Ver Richard Williams, Sex and Buildings: Modern Architecture and the Sexual Revolution (London: Reaktion Books, 2013).

67.

Racialização ideológica diz respeito à “democracia racial”, nome que foi dado às ideias oriundas de Gilberto Freyre principalmente. Ver Luiz Souza, “História, poder e identidade nacional em Gilberto Freyre”, Métis: história & cultura v. 5, n.° 10 (jul./dez. 2006): 173.

68.

Ver Stéphane Malysse, “Em busca dos (H)alteres-ego: Olhares franceses nos bastidores da corpolatria carioca”, em Nú & vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca, Mirian Goldenberg et al., 2.a ed. (Rio de Janeiro: Record, 2007).

69.

Ver Donna Haraway, Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature (New York: Routledge, 1991), 314.

70.

Ver Miriam Goldenberg, “A Civilização das formas: o corpo como valor”, Nú & vestido, 19.

71.

Donna Haraway, “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”, em Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano (Belo Horizonte: Autêntica, 2009).

72.

Os exercícios físicos vêm desde os anos 2000 sendo uma das principais ferramentas de produção da tecnobunda, especialmente para aquelas pessoas com menos recursos financeiros, que não tem acesso fácil a cirurgia plástica ou um procedimento estético que obtém resultados rapidamente. Blogueiras, celebridades e profissionais da educação física se notabilizaram pela promoção de técnicas de endurecimento dos glúteos, através das redes sociais.

73.

Paul Beatriz Preciado, Manifesto contrassexual, trad. Maria Paula Gurgel Ribeiro (São Paulo: n-1 edições, 2017), 83.